quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

"Mímeses e metáfora na educação corporal" (Paulina Caon)


Mímeses e metáfora na educação corporal
por Paulina Maria Caon (USP) – comunicação oral
GT – Dança, corpo e cultura
Palavras-chave: educação corporal, mímeses, metáfora, cultura.

Nessa comunicação apresento reflexão específica, emergente da pesquisa de mestrado em andamento: as relações entre os processos cognitivos da mímeses e da metáfora, das quais surgem pistas para a compreensão da dinâmica de educação corporal e formação de uma cultura corporal nas comunidades de remanescentes quilombolas estudadas (Brotas, em Itatiba, e Praia Grande, em Iporanga).

Da experiência em campo:
 * Um conjunto musical de crianças: um deles se senta sobre um toco de madeira (pés no chão, quadris bem pousados no toco, coluna ereta) – é o baterista de um instrumento formado por outros três tocos; há um guitarrista em pé e um sanfoneiro sentado.
* Uma pré-adolescente tímida se esconde da pesquisadora: enfia-se debaixo da mesa, como um camaleão que assim pretende sumir, alinhando a coluna a um dos pés da mesa.
* (Bira) Dava uma foice e uma enxada pa gente... (risos) ...e o que fizesse tinha que fazê também.[ii]

A mímeses é o modo primeiro de o homem se apropriar do mundo, compondo de forma fundamental sua educação, num ímpeto, aparentemente paradoxal, de se assemelhar e se diferenciar dos objetos do meio. “Se procurarmos a fórmula mais curta para definir ações miméticas, poderíamos dizer que esta seria fazer o mundo mais uma vez. Este fazer tem um lado simbólico e um material, um prático e um corporal.” (GEBAUER, 2004: 14, grifo meu).
Marcel Mauss destaca a capacidade humana de transmitir suas “técnicas corporais”, os atos eficazes e tradicionais do corpo, o que caracteriza a tradição. “O que se passa é uma imitação prestigiosa. A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela.” (MAUSS, 2003: 405). Na contemporaneidade, a imitação pôde ser vista como um fenômeno de raízes biológicas (BLACKING, 1977; KATZ, 2005), uma parte fundamental dos processos de construção de padrões corporais e de conhecimentos, independente do ensino formal ou da oralidade. Isso significa, como sugere John Dawsey, que, na constante exploração da mímeses, o ser humano também imita os atos não prestigiosos de outros corpos, o que pode ser observado explicitamente no caso da criança de primeira infância que realiza as primeiras imitações como explorações sensório-motoras. De modo que: “A aquisição do hábito é sim a apreensão de uma significação, mas é a apreensão motora de uma significação motora.” (MERLEAU-PONTY, 1999:193). Na construção de movimentos ao longo da vida, “... a informação que chega se torna corpo em negociação com as informações que lhe antecederam naquele corpo.” (KATZ, 2005: 109). Nessa negociação e modelagem contínua, cada corpo construirá mapas e padrões singulares, entretanto, estará disponível ao corpo dos novos (ARENDT, 1979) determinado repertório corporal construído antes de sua chegada. Essa cultura corporal condiciona a formação do repertório da criança em qualquer dos exemplos citados anteriormente. Portanto, o corpo que emergirá após os primeiros anos de vida de uma criança dos grupos estudados, e os sentidos por ele elaborados, não são passíveis de uma significação direta: de uma conexão direta com a imitação de certo padrão de movimento ou ação do adulto, mas de um processo de assimilação e invenção léxica, cujo princípio está na singularidade de cada corpo que interage com o ambiente e a cultura corporal de sua comunidade.

Uma das acepções para metáfora é a utilização de expressão em sentido figurado, consistindo “...na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurativo.” (FERREIRA, 1986: 1126 - grifo meu).

Johnson e Lakoff (2002) investigam o modo como conceitualizamos o mundo por meio de metáforas e como estas são emergentes de nossa experiência corporal, deslocando o modo de experienciar humano, de uma apreensão unívoca de objetos e circunstâncias para a operação com múltiplas metáforas inconsistentes na relação com o mundo.

Nesse contexto, sugiro: o conceito de mímeses como ímpeto inato de reprodução perfeita de algo que é mimetizado dialoga com o conceito de metáfora. Os dois processos compõem passos praticamente simultâneos no trânsito intenso entre “o dentro e o fora do corpo”. As crianças do conjunto musical citado, simultaneamente, o imitam (tentam reproduzi-lo) e realizam uma metáfora do conjunto musical (ao realizarem deslocamentos: de uma experiência auditiva do aqui-e-agora para seu corpo, ao ressignificarem objetos do espaço ou partes do corpo). Nas lacunas da imitação surge a representação metafórica, o deslocamento de objetos e sentidos, como solução criativa a um problema concreto surgido na interação do ser com o ambiente. A busca dessas soluções, envolvendo mímeses e metáforas, leva a repensar a categorização que separa o pensamento racional e o pensamento artístico. O ser humano, portanto, exercita cotidianamente o pensamento metafórico, pertinente no processo de criação artística. A capacidade de elaborar metáforas, presente desde a primeira infância, permanece até a vida adulta, sendo o substrato sobre o qual o ser humano opera sobre o mundo e o modo como ele faz surgir um mundo (KATZ, 2005). Na interação entre mímeses e metáfora, se dá o movimento complexo entre identificação e aprendizado da criança em relação ao adulto e, simultaneamente, a diferenciação, a experiência de alteridade na síntese de movimento singular e metafórica que emergirá na sua execução.

O espaço é outro eixo fundamental na compreensão dos processos estudados, por sua natureza de contexto no qual o ser humano interage e experiencia o mundo. Tal contexto não é um pano de fundo sobre o qual pousam as vidas que observo em campo, mas é um elemento constitutivo da interação presente (GREINER, 2005) e causador de perturbações e estímulos que fazem emergir estados corporais e novos conhecimentos (MATURANA & VARELA, 2001).

Em Praia Grande, por exemplo, esse contexto é muito peculiar, já que a comunidade se situa em território de Mata Atlântica, alterado apenas pela interação das gerações de moradores com o espaço. Os modos de construção se alternam entre o pau-a-pique e as casas de madeira, com as cozinhas de fogão a lenha e banheiros no terreiro. Há uma contaminação entre o meio ambiente e a organização do espaço construído pelos moradores. A terra da mata e a terra das casas ou dos pisos; a diversidade de microclimas e os diferentes nichos organizados no espaço (cozinha, banheiro, casa, horta, casa de ferramentas); uma espécie de correspondência ordena o ecossistema como um todo. O espaço interior da casa também reflete essa relação: nas sacas de cereais colhidos e armazenados nos cômodos da casa, nos apas e peneiras penduradas na parede utilitariamente, mas compondo uma “decoração”, ao lado dos calendários, imagens de santos, paneleiros. O trabalho na terra modela o corpo e define a educação corporal da comunidade, assim como as tecnologias dele derivadas: pilões, “tráfegos de farinha”, peneiras. Costumes, padrões de organização, limpeza e beleza emergem do tipo de convivência específica que foi gerada na relação histórica entre esse espaço físico e seus moradores.

Assim, emergem hipóteses: 1)a conduta mimética é a condição para os processos de identificação e diferenciação, construção de metáforas, personalidade e alteridade; 2) essa cultura corporal é construída intrinsecamente pela interação com o espaço físico e se desdobra no modo de pensar e ordenar o espaço da casa, do terreiro, das roças e por fim de pensar o mundo.

A delimitação de uma cultura corporal, mais uma vez, não pode ser justificada de modo direto, mas é parte de uma seqüência de sínteses, espelhamentos, reelaborações realizadas ao longo de gerações e atualizadas em cada ação dos moradores atuais. À semelhança do que ocorre com os artistas da performance: no instante em que acontecem as ações, que perpetuam certa tradição ou a alteram, há uma ambivalência entre o repertório de toda uma vida ou de tantas gerações e “...o modo como o fenômeno se dá a ver naquele instante.” (GREINER, 2005: 115)

Assim surge uma “transmissão” da experiência entre gerações que não implica em reprodução direta, mas numa memória corporal experienciada por meio da modelagem corporal e constituída na relação com o espaço concreto da comunidade. Ou seja, nas comunidades estudadas e, acredito, em qualquer sociedade humana considerada, há uma educação corporal subterrânea ou explícita, formal ou não, que é a raiz profunda da cultura. Enfatizar que a memória e a educação humanas são incorporadas (embodied) e compreender os impactos dessa afirmação ainda é parte de meus objetivos na pesquisa de mestrado a ser finalizada.

BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. SP: Editora Perspectiva, 1979.
BLACKING, John(org.). The Anthropology of the Body. London, New York and San Francisco: Academic Press, 1977.
DAMÁSIO, António. O Mistério da Consciência, SP: Cia. das Letras, 2000. Apêndice, p.401-423.
DAWSEY, John. Victor Turner e antropologia da experiência. Cadernos de Campo (São Paulo),      2005, ano 14, no.13, p.163-176.
GREINER, C. O Corpo – pistas para estudos indisciplinares. SP: Annablume, 2005.
LAKOFF, George e JOHNSON, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana, São Paulo: Educ, 2002.
KATZ, Helena (org.). Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. BH: FID Editorial/Helena Katz, 2005.
MATURANA, H. & VARELA, F. A Árvore do Conhecimento. SP:Palas Athena, 2001.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. SP: Cosac&Naif, 2003.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. SP: Martins Fontes, 1999.




[i] Opto pela utilização da forma grega da palavra.
[ii] Entrevista realizada com moradores da Praia Grande no dia 28-06-07.

"Experiência Estética e Educação Corporal Da etnografia a algumas considerações teóricas" (Paulina Caon)


Experiência Estética e Educação Corporal
Da etnografia a algumas considerações teóricas


Paulina Maria Caon[1]


Resumo: O artigo parte de elementos da etnografia de festas populares de Praia Grande (Vale do Ribeira-SP), realizada durante a pesquisa de mestrado da pesquisadora, para refletir sobre as relações entre experiência estética e educação corporal, dando ênfase aos mútuos impactos que ambas experiências têm sobre a formação de sujeitos e de grupos sociais.

Palavras-chave: Experiência estética; Educação corporal; Antropologia cultural; Memória corporal.

Abstract
The article will presents elements of the ethnography popularly parties from Praia Grande (Vale do Ribeira-SP), composed during the mastering research, to reflect about the relationship between aesthetic experience and body education, with emphases to the impacts that both experiences have over the person formation and social life.
Word-keys: Aesthetic experience, body education, cultural anthropology, body memory.


Primeiras palavras

[...] pois se é verdade que tenho consciência de meu corpo através do mundo, que ele é, no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a volta em torno deles, e neste sentido tenho consciência do mundo por meio do meu corpo. (Merleau-Ponty, 1999, p.122)


O corpo é o centro gerador da cultura humana e foi objeto de estudos de diferentes áreas do conhecimento. Há uma gestação corporal dos modos de ser, estar e atribuir sentidos às experiências (BRANDÃO, 1989, 1986) que se dá na interação dinâmica entre mundo-eu, assim como nos processos de percepção e conhecimento do mundo. Nesse sentido é a experiência fenomenal ou, poderia ser dito, a experiência corporal, a raiz dos processos que aqui nomearei como educação corporal.
Nos estudos contemporâneos (GREINER, 2005; KATZ, 2005; JOHNSON & LAKOFF, 1999; et. al), o corpo não é um produto acabado, estável, nem um corpo-máquina. O corpo possui características físicas e fisiológicas que limitam, condicionam sua atuação. De outro lado, cada ser humano, portanto cada corpo é singular, regido pelas mesmas regras, mas capaz de realizar conexões e sínteses de acordo com as experiências vividas de modo único por ele. As experiências, por sua vez, desenrolam-se em uma cultura, um mundo (MERLEAU-PONTY, 1999), em um trânsito constante de elementos entre o individual e o coletivo, o particular e o cultural.
Geertz (1989 e 1998) e Arendt (1979) afirmam que o corpo, o ser humano não nasce isolado de um mundo ou uma cultura anterior a ele. Reciprocamente, os textos culturais, um mundo em comum a ser partilhado, são também, como resíduo e produto de estabilizações e permanências, mesmo que temporárias, das experiências corporais vividas e partilhadas geração após geração pelos corpos no mundo. Nesse sentido é que utilizarei a seguir o termo cultura corporal, como uma afirmação, uma ênfase no enraizamento corporal implicado na formação desses textos culturais. Educação corporal e cultura corporal, deste ponto de vista, são processos imbricados mutuamente no tecido da vida social e que atravessam toda a vida humana, independentemente da educação escolar, por exemplo.
Por fim, a idéia de contexto é elemento fundamental na constituição do conceito de educação e cultura corporal. O contexto pode ser aqui entendido como o lugar no qual se desenrola a vida social em constante interação e reciprocidade. O contexto ou ambiente é um desencadeador de estímulos que geram alterações e a constituição da corporalidade atual e dinâmica de grupos sociais. Os corpos interagem com o ambiente no aqui-e-agora das experiências fazendo emergir as ações e os processos de significação atuais. Ou seja, tais ações e processos de significação não são elementos dados ou “naturais” (GREINER, 2005; MATURANA & VARELA, 2001; et. al.), mas resultantes de um processo de diálogo constante entre mundo-corpo.
No presente artigo me coloco o desafio de tecer considerações sobre a relação entre experiência estética e educação corporal, partindo da apresentação de aspectos da etnografia de Praia Grande (Vale do Ribeira-SP) - comunidade de remanescentes quilombolas, reconhecidas em 2002 – nos quais descrevo fragmentos da experiência estética e ritual desse grupo. Considero a experiência estética como uma emergência do fluxo da experiência corporal desse grupo. Assim também, ressalto que o fluxo de ações simbólicas presente em alguns acontecimentos rituais e estéticos da vida desse grupo se desdobra em fontes de educação corporal e produção de textos culturais, aqui entendidos como os trânsitos de padrões de ação e reflexão entre corpos e/ou gerações. Especialmente na apresentação dessa breve etnografia, utilizarei diferentes mecanismos de descrição etnográfica: fragmentos de caderno de campo, descrições de cenas, fragmentos de entrevistas.

Festas em Praia Grande

            As festas na comunidade de Praia Grande têm um caráter cíclico, manifestando certa forma de percepção do tempo. Elas se conectam ao calendário religioso local (município de Iporanga) ou ao cumprimento de promessas de moradores do bairro, com é o caso das romarias para São Gonçalo, que serão objeto de descrição a seguir.
Desde os preparativos para as festas emergem elementos que refletem a cultura do grupo com sua ordenação simbólica, hierárquica ou de gênero. Um morador pode ter de organizar seu plantio e colheita de todo um ano para poder “pagar” a promessa “aceita” por São Gonçalo. Mulheres e homens ocupam diferentes espaços nos sítios antes e durante a realização de diferentes festejos e rituais.

Os homens serram, martelam, carregam. Fazem peso na balsa todos para um lado só, viram a barca (usando remo, vara, mão). Abraçam-se, cumprimentam-se com as mãos. Os mais novos pedem a bênção para os mais velhos. Descascam madeiras, separam e puxam cipós para o mastro. Capinam o mato do porto com facão, cavam o barranco. Pulam na água, mergulham e nadam. Medem forças um com o outro de brincadeira, bebem água, bebem pinga. Acocoram-se na sombra pra descansar. Alguns dormem na igrejinha do terreno...
           As mulheres, na casa, não param também. As mulheres picam, ralam, mexem os alimentos nas panelas. Contam as histórias dos últimos acontecimentos. Carregam enormes panelas pesadas, cheias de comida, utensílios, sacas de alimentos. Empurram a lenha no fogão, colocam mais lenha. Varrem o chão, lavam e guardam louças. Fritam carnes. Riem, caminham de um lado para o outro. Põem a mesa do almoço.[2]

            Em qualquer caso, há um engajamento corporal forte nesses preparativos. Não apenas pela presença dos moradores (que ocorre também durante as festas), mas porque diferentes esferas da vida dos sujeitos se voltam para tais preparativos. Ou seja, neles se manifesta uma cultura corporal, resultante da utilização cíclica das mesmas técnicas corporais apreendidas da convivência (sociabilidade) entre as mesmas famílias, nas diferentes gerações que vão, gradativamente, se envolvendo nos trabalhos durante tais atividades.

Da Romaria para São Gonçalo
A Dança de São Gonçalo é parte do cumprimento de uma promessa de alguém, por motivo de morte, doença grave ou alguma graça alcançada, por isso alguns de seus estudos clássicos (QUEIROZ, 1958; BRANDÃO, 1975 e1989) a denominam como uma dança votiva.  A romaria, como é chamada pelos seus autores, é um todo composto, pelo menos, pela reza de uma novena ou oração em ação de graças pela promessa aceita e realizada por São Gonçalo, em frente a um altar montado especialmente para a ocasião; a oferta de comida para os participantes/convidados que dançarão pagando a promessa do festeiro; a Dança de São Gonçalo em si e uma reza final de encerramento das atividades.
Como em outras festas, a romaria se compõe por toda a rede de trocas que se estabelece antes, durante e depois da realização da festa propriamente dita: o feitio da promessa, a disseminação da notícia de sua aceitação e realização, a preparação da pessoa para pagá-la (que pode durar anos), a preparação do “festeiro” próxima ao evento (da casa, dos alimentos etc.), a preparação dos moradores do bairro para “ir” à romaria e a realização da noite de danças propriamente dita. Nesse momento, me dedicarei à descrição e análise da realização da noite de danças propriamente dita.
Primeira cena – sobre uma promessa atendida: Rio Ribeira do Iguape. Mata Atlântica. No barco, Ubiratan na frente, remando. Eu era a única passageira, filmando entre galinhas, sacos de grãos, mochilas e um porco – os donativos para Festa do Divino Espírito Santo – que estavam sendo levados até a cidade de Iporanga depois de uma noite de romaria na casa de Dito Beto e Dona Maria. Ubiratan passara a noite em claro, dançando o São Gonçalo, e rema calma e ritmicamente o barco, cujo motor quebrou. As remadas embalavam a conversa.

[...] a romaria... isso aí foi uma coisa já... que já veio de neto, bisneto, tataraneto... é uma coisa antiga, ô. Eu vou contá pa você, cê não vai acreditá... Em 2000, em 97, eu tava..., só tava eu e... a minha ex-muié que morreu lá, lá em casa, e comadre Conceição co’as criança dela; essa enchente aqui, que, que a ponte aqui qua,quase foi embora. Aí, pa, pa encurtá a história: e chuva, chuva, ieu peguei, fiz, fiz um... barraquinho de lona pra cima, na beira do capão de mato ali e fui ba, bardeano, os sa, saco de...de arroz lá, fui bardeano, bardeano, bardeano, depoi num tava aguentano mais tirá as coisa de dentro de casa e a água foi subinu, a água chego na área de casa ali...  aí eu cheguei e pidi pa São Gonçalo q, que... cê só entenda pocê vê, eu peguei e pidi pa São Gonçalo que fizesse aquela água pará ali que eu fazia uma noite de, de romaria p, pra ele... E eu peguei, ô Paulina, finquei um pedacinho de pau e a, acendi uma vela, a água ficô duais hora parada ali, parado... aí  depoi que a água pegô e abaixô... A pro, pro...messa que eu fiz f, foi aceita, senão a água entrava lá pra dentro de casa... i eu perdia tudo [...] (Sr. Ubiratan)[3].

 Na primeira romaria que acompanhei, ao chegar à casa do festeiro, que cumpria promessa relativa à saúde de seu neto, havia um altar de São Gonçalo, preparado previamente. A bandeira foi colocada nele com cantorias, serviu-se um café, houve a reza do terço, finalizando uma novena, e se iniciou a dança, que atravessou a noite toda, apenas interrompida pelos momentos de se ofertar os alimentos aos convidados-dançarinos da festa.
Cada promesseiro cumpre certo número de voltas da dança, por ele próprio prometido. Há cantadores e tocadores de violas de dez cordas, de violão, que fazem baixos e solos; também pode haver um pandeiro. Os puxadores são dois homens, mestre e contramestre, que abrem duas vozes. O coro que responde ao canto dos mestres é composto por duas cantadeiras apenas. Os outros participantes dançam e batem palmas.
Segunda cena: naquela tarde, Dona Dejair preparara a banana da terra frita, o café pilado fresquinho e havia posto sobre a mesa, oferecendo, num prato separado, a farinha de milho em flocos para comer com a banana. Estavamos ela, Nildinha e eu, em torno da mesa, para a filmagem da entrevista. A mesa, comprida, ocupava o maior comprimento da cozinha e os gestos de Dona Dejair se utilizavam dessa medida mais ampla para sinalizar as referências às linhas espaciais da Dança. Apesar de permanecer o tempo todo sentada, os passos e ordenações foram demonstrados com partes do corpo. Em certo momento ela disse:

Só sei dizer, minina do céu, quando eu tinha deiz ano, eu me lembro bem, eu ia em romaria, mas eu achava aquilo lindo, tão lindo. Ieu achava que podia cantá, tudo mundo pudia cantá, na vorta; num é, é só a cantadera, né... A cantadera na frente e uma cantadera atrás (apontando no espaço)... só duas cantadera só... É. Ai, mais eu entrava, boba, cum deiz ano eu entrava dançá, aí cantava no meio de quarqué forma (risos), eu gostava, sabe... Depôs que eu vim crescendo que eu fui entendendo que, ah, num é mais de duas cantadera... daí eu larguei (e sorri), aí larguei de cantá. Daí, mais aprendi cantá, boba, eu canto na romaria [...] (Dona Dejair)[4]

A dança se realiza pela movimentação de duas linhas: uma de homens e outra de mulheres, guiadas uma por um mestre e outra por um contramestre. Como bloco ou aos pares, tais linhas evoluirão pelo espaço em desenhos ora circulares ora retos, rodeando umas às outras, numa seqüência por vezes longa. As crianças dançam junto com os adultos, mas são contadas como pares somente a partir do momento que dominam a dança. Ao longo da noite de danças, formam-se agrupamentos de dançarinos e espectadores que trocam de papéis a cada volta. Ainda que todos se refiram à dança como devoção, a presença constante desses espectadores acentua o caráter performático da situação.
            A Dança de São Gonçalo não tem uma fábula no sentido estrito. Ela tem uma estrutura ritual em que, a cada volta, é realizada uma seqüência de movimentos estilizados de saudação, louvor, reverência e despedida ao altar do Santo.  Em relação aos versos cantados, Sr. Domingos explica: “Verso, verso tem bastante verso conhecido, né, tem vários, tudo mundo sabe, mas tem o verso que é inventado na hora; vem [...]”. Ele gesticula com a mão, mostrando algo que vem de fora para dentro da cabeça. Sr. Antônio (que aprendeu a tocar viola com o outro) complementa a fala: “[...]o altar, né, que puxa o verso... É, quando chega no altar já tem um verso que vem pra ocê cantá”.
O conjunto formado pela alternância de momentos do ritual (religiosos ou não) é o que define a festa naquilo que ela tem de suspensão de um tempo cotidiano e o que a faz manifestar-se tão plenamente como fato social total (MAUSS, 2003). Nas festas se desdobram e expressam múltiplas facetas da estruturação desse grupo: desde a criação das condições de manutenção e reprodução do repertório corporal e do sistema de crenças espirituais de seus sujeitos, passando pelo reconhecimento de hierarquias, relacionamentos sociais e políticos até a emergência e resolução de conflitos entre pessoas ou subgrupos. A festa se faz espaço de atualização de sentidos e visões de mundo coletivas, que, por vezes, incluirá a própria transformação dessas formas de ver e atribuir significados à experiência.
Volto ao ponto para não perdê-lo de vista: há uma cultura corporal que emerge no contexto das festas. Mais ainda, é o corpo o suporte dessa experiência religiosa e festiva, sobre a qual refleti no último parágrafo, por exemplo. O corpo é o gerador de estabilidades e instabilidades nos padrões de movimento, ação e reflexão (GREINER, 2005), a partir da interação entre ambiente-corpo e entre os corpos, construindo essas teias de sentido, textos de cultura local. O fio que conduz essa comunidade ao longo do tempo em conexão com tais repertórios é que ganha o nome de tradição (ARENDT, 1979) e criar tais estabilidades, mesmo que temporárias, é necessidade para sobrevivência do corpo e desses textos culturais, como sistemas.

Experiência estética e educação

[...] é aqui que o conceito de cultura tem seu impacto no conceito de homem... Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. (Clifford Geertz, 1989, p.37)

            A noção de experiência estética é complexa e tem séculos de debate já estabelecido. Tolstói (1994) fala da arte como uma ação na qual um homem se comunica com outros homens, contagiando-os com seus sentimentos sobre o mundo. Para Marcel Mauss (2006) os fenômenos estéticos emergem do fluxo social como ações, muitas vezes imbricadas de técnicas e tradições, que não têm uma utilidade em si, gerando alegria, prazer e construindo uma noção de belo entre os membros de certo grupo. Outros autores refletiram sobre a arte e a estética como fenômeno pautado na experiência do Belo, como Hegel (1994). Dialogando com aspectos do pensamento desses autores, de minha parte, considero a experiência estética como as situações nas quais se manifesta a capacidade inata do ser humano de representação e elaboração de visões de mundo a partir da interação com o espaço e com os outros seres, por meio de diferentes linguagens, fazendo emergir ordenamentos, objetos, ações e composições artísticas que engendram uma experiência de fruição nos que se deparam com elas.
Minhas observações em Praia Grande apontam para o surgimento da experiência estética nos momentos de festas e rituais coletivos, portanto, de suspensão do cotidiano e, em alguns casos, nos momentos de solidão e ócio, no caso da produção individual (tocar um instrumento musical, produzir um artesanato).
A experiência estética individual ocorre em relação intrínseca com a experiência coletiva. As escolhas individuais em relação ao aprendizado artístico recaem sobre o universo da experiência estética coletiva, ou seja, pré-adolescentes e jovens sentem afinidades com algum dos instrumentos musicais, com a dança ou com o canto presentes nesses festejos, e passam a se dedicar ao aprendizado deles. Tal aprendizado pode ocorrer de forma autodidata ou sob a orientação dos mais velhos que dominam certo instrumento musical, por exemplo.

[...] a romaria que eu comecei tocar, ele é o nosso professor [aponta para o Sr. Domingos] [...] você foi que ensinô nóis batê viola no começo [...], ele foi mais professor meu que padrinho! Até às veis eu batia a viola meio errada assim, “capricha mais, tem que tá co dedo mais ligero”, e... a gente aprendeu assim... curtivano essa devoção [...] (Sr. Antônio)[5]

No aprendizado dessas linguagens (musical, corporal, poética) surgem processos miméticos. Os aprendizes de mestre de romaria, cantadeiras, dançarinos, aprendem na convivência cíclica com os festejos, percebendo sua afinidade e manifestando sua vontade para os mais velhos que passam a propor uma participação diferenciada desses aprendizes nas festas. Há um período do aprendizado por meio da imitação e somente depois dele é que a pessoa adquire a possibilidade e a autoridade para alterar, improvisar, recriar nas diferentes áreas: criar um novo verso para São Gonçalo, improvisar modos de bater a viola ou a caixa.
No sentido coletivo, diferentes dimensões estéticas se manifestam no contexto da romaria para São Gonçalo, de que falo aqui. São altares cuidadosamente organizados para receber o Santo, atmosferas rituais, performances coletivas do grupo de dançarinos de uma volta da Dança de São Gonçalo, composições musicais tocadas e cantadas, e estes são alguns dos elementos que revelam o acontecimento de uma experiência estética significativa para o grupo nesse contexto. As festas se mostraram durante a pesquisa os espaços de socialização dessas experiências de múltiplos sentidos: a elaboração e expressão estética de indivíduos e coletividades engajadas no acontecimento ritual, a fruição estética por parte dos participantes da festa que não estão envolvidos na execução de uma dança ou música propriamente ditas, a experiência do sagrado no conjunto da festa pelo grupo como um todo (atuantes ou fruidores).
No caso da Praia Grande, dessas considerações emerge outro aspecto relevante em relação à produção estética do grupo: há um espaço de indiferenciação entre a experiência do sagrado e a experiência estética. Ou seja, muito da beleza, do cuidado e do pensamento envolvido nas escolhas estéticas das pessoas ou do grupo visa à realização de um ritual mais belo ou mais devoto. A devoção é o elemento que pauta a produção estética, assim como o desenvolvimento artístico dos indivíduos que se engajam nessa produção (mestres, contramestres, cantadeiras, caixeiros). Contraditoriamente, o grupo não se pensa como artista e nem pensa sua própria experiência estética como arte. O próprio termo “arte”, ou “estética”, pouco surge no fluxo das ações e falas do grupo. Entretanto, importa perceber que, assim como no caso da corporalidade, o fato de não haver representações conscientes do grupo sobre sua experiência estética, isso não implica que ela não exista ou que não tenha importância, mas apenas que ela ocorre no nível da experiência inconsciente. Ao contrário, a interrupção da vida cotidiana pelos momentos de festa (com suas dimensões estética, sagrada, cultural, social) é parte fundamental da vida do grupo, que tem um sentido em si mesmo e, ao se opor ao tempo cotidiano, é um espaço de releitura e atribuição de sentido a ele. A existência dessa produção estética em Praia Grande remete à manutenção de um mundo comum partilhado pelo grupo, que dá sentido e atualiza os sistemas de trocas entre seus integrantes, engendrando a experiência de enraizamento e pertencimento do grupo.
Para concluir, neste contexto emerge a idéia (que é experiência coletiva) de uma memória corporal. A combinação entre memória e corpo é uma maneira de redimensionar o conceito de memória, já constituído historicamente, por meio do enraizamento corporal da experiência. Os elementos de uma cultura não são estabilizados e transformados em memória apenas por processos mentais ou por sua utilização na oralidade ou ainda por registros em diferentes suportes. Os elementos de uma cultura são primeiramente experimentados, registrados e sobrevivem, são relidos ou descartados pelo corpo; são aquelas informações, experiências tornadas corpo (KATZ, 2005). Desse ponto de vista, a memória corporal é uma manifestação da dinâmica entre estabilidade e instabilidade dos repertórios que compõem uma cultura, e que define ao longo dessa educação corporal, o que “permanece” e o que se perde com o passar do tempo. Ou seja, a memória corporal historiciza o conceito de educação corporal e de cultura corporal, ela manifesta os traços compostos de “lembrança” e esquecimento mantidos, e revela aqueles descartados pelo grupo ao longo do tempo. Desse ponto de vista, os acontecimentos estéticos e de realização cíclica, como é o caso das festas em Praia Grande, contém essa dimensão da construção e re-construção constante da memória corporal coletiva. Ela dá relevo ainda maior aos impactos mútuos que a experiência estética e a educação corporal mantém entre si nos processos de significação e construção de sentido de indivíduos e grupos sociais.
Após essas considerações, não seria excessivo enfatizar, a importância da experiência estética na formação do ser humano em geral. Ainda que no contexto da educação escolar, o ensino do teatro na contemporaneidade, por exemplo, tenha em vista objetivos amplos como a alfabetização na linguagem teatral e a reflexão sobre os modos de ser, estar e criar do homem (PUPO, 2001), que apontam para o reconhecimento de sua relevância como área de conhecimento autônoma.
O educador da área de teatro pode ter nas culturas tradicionais populares um repertório de experiências genuínas e ricas esteticamente sobre as quais se debruçar em suas práticas pedagógicas. Pode, por meio da apreciação e experimentação desses repertórios, proporcionar a ampliação dos referenciais culturais de seus estudantes, assim como utilizar as soluções cênicas e corporais que emergem dessas manifestações como ponto de partida para investigações coletivas no processo de ensino. O estudo desses elementos poderá, por exemplo, promover uma percepção crítica sobre a educação corporal que ocorre nas grandes cidades, assim como sobre os processos de enraizamento (ou desenraizamento) cultural presentes na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

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1979.
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________________ Identidade e Etnia: construção da pessoa e resistência
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_______________ . O Papel da Cultura nas Ciências Sociais. POA: Editorial
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GREINER, C. O Corpo – pistas para estudos indisciplinares. SP: Annablume,
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_____________ Sociologia e Antropologia. SP: Cosac&Naif, 2003. Quinta
parte: Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de eu, p.369-397. Sexta parte: As técnicas corporais, p.399-422.
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Fontes, 1999. Prefácio/Introdução: Os prejuízos clássicos e o retorno aos fenômenos, p.01 a 99; Primeira Parte: O corpo, p.111 a 270.
PUPO, Maria Lucia. O Lúdico e a Construção do Sentido. Revista Sala Preta (São
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QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. A dança de São Gonçallo, fator de homogenização social numa comunidade no interior da Bahia. Revista de Antropologia (São Paulo), 1958, vol.06, no.1, p.39-52.
TOLSTÓI, Leon. O que é a Arte?  SP: Experimento, 1994.





[1] Artista cênica, pesquisadora e educadora. Mestre em Pedagogia do Teatro com a dissertação “Construir Corpos, Tecer Histórias: educação e cultura corporal em duas comunidades paulistas”. Atualmente ministra Metodologia do Ensino das Artes Cênicas no Depto. de Artes Cênicas da ECA-USP
[2] Fragmentos do caderno de campo no.1, p.57, anotados durante um dos dias de festa para Nossa Senhora do Livramento em 2007.
[3] Transcrição de entrevista com Sr. Ubiratan, realizada em julho de 2008.
[4] Transcrição de entrevista realizada em junho de 2007.
[5] Transcrição de entrevista realizada com mestres de romaria em julho de 2008.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

"Uma possível história da dança Jazz no Brasil" (Ana Carolina Mundim)

ANAIS
III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005
UMA POSSÍVEL HISTÓRIA DA DANÇA JAZZ NO BRASIL
Ana Carolina da Rocha Mundim*
RESUMO: O presente artigo busca tratar sobre o aspecto histórico da dança jazz no Brasil,
tentando estabelecer um percurso capaz de contextualizar essa prática artística que se
desenvolve em nosso país. Por meio do destaque de alguns eventos fundamentais neste
processo, em ordem cronológica, pretende-se traçar uma possível história do “jazz brasileiro”,
apontando, inclusive, as personalidades que vêm construindo essa estruturação desde sua
instalação. O envolvimento de profissionais pioneiras, como Marli Tavares e Vilma Vernon, no
processo de capacitação técnica para a criação e o ensino deste estilo de dança, teve como
conseqüência o surgimento de novos bailarinos multiplicadores do jazz. As bases de formação
que se disseminaram inicialmente no Brasil foram, principalmente, as técnicas de Lennie Dale,
Luigi, Ron Forella, Jo Jo Smith e Betsy Hang.
INTRODUÇÃO
A dança jazz estabelece uma grande aproximação com aspectos da rotina popular,
como lembram Horst e Hussel, transformando-se, assim, em elemento de fundamental
importância para a compreensão da dança no Brasil. No entanto, apesar desse significado
especial, é pouco o que se sabe a respeito da sua vinda para o país e do desenvolvimento
desde então até os tempos atuais. Por isso, investigamos essa manifestação por meio do
recolhimento de dados históricos e do contato com profissionais da área. Buscamos traçar uma
possível presença do começo e desenvolvimento desta manifestação artística no país e as
personalidades de maior destaque nesse contexto.
Verificamos que os primeiros indícios da dança jazz no Brasil surgiram por volta das
décadas de1930 e 1940, mas foram os anos 60 que a impulsionaram concretamente no país,
deixando heranças técnicas até os dias atuais. Pretendemos acompanhar o fluxo de
mudanças, no contexto das manifestações em dança, que se concentrou, especialmente na
* Doutoranda em Artes pela UNICAMP, Mestre em Artes pela UNICAMP, Graduada em Dança pela UNICAMP.
Professora externa da PUC-Campinas. Integrante do Grupo de Pesquisa em Dança e Teatro República Cênica,
Coordenadora do Projeto Artístico para o Desenvolvimento Social.
96
década de 1960 e se reflete até hoje. Estimuladas sobretudo no dinamismo dos espetáculos
musicais, nas apresentações de televisão, filmes musicados e na abertura de academias de
dança jazz, essas mudanças irão introduzir nas estruturas de cursos acadêmicos desde
técnicas importadas diretamente de escolas e profissionais do exterior, até estilos de bailarinas
brasileiras apropriados às características de nossa cultura.
A partir da realização de um breve percurso cronológico, buscamos indicar um
panorama histórico que permita ao leitor o entendimento deste fenômeno conhecido como jazz
dance ou dança jazz, dentro da conjuntura artística brasileira.
BREVE PANORAMA DAS RAÍZES DO JAZZ
A origem do jazz pode ser encontrada na chegada do primeiro navio negreiro aos EUA.
De acordo com dados do artigo Jazz, Jazz, Jazz...,1 para serem colocados no navio sem
resistência, os escravos eram convidados a dançar e, quando percebiam, já estavam em alto
mar.
Uma forma de expressão dos negros eram as Work Songs (Canções de Trabalho), que
chegavam, até mesmo, a ser ordenadas por seus donos, os quais se tranqüilizavam com elas
por trazerem aumento de produtividade e contribuírem para o afastamento do perigo de
rebelião. Os senhores brancos, inclusive, levavam os escravos, a locais públicos permitindo a
dança (a Calinda e a Dança de Bamboula eram as preferidas) e o canto sob vigia. As Canções
de Trabalho funcionavam como uma manifestação dos pensamentos dos trabalhadores e
revelavam seu cansaço. A música era o código de comunicação estabelecido pelos escravos.
Além destas, eles tinham espaço para cantar nos cultos protestantes. Cantavam e dançavam o
Ring Shout, adotado para atrair os jovens que queriam dançar. Embora fosse proibida pelo
protestantismo, a dança para essa religião tinha o significado de cruzar os pés. O Ring Shout
era permitido, pois nele não existia o cruzamento dos pés. As músicas que cantavam nesses
cultos eram as Gospel Songs.
Às suas formas de expressão musical ainda somavam-se os Spirituals e o Blues. "Os
Spirituals passaram a existir com a aproximação dos brancos e a educação social dos negros.
[...] O Blues surgiu como expressão vocal e corporal sobre a vida terrena".2
É importante ressaltar que a origem do jazz se deu pela união das culturas branca e
negra. Os negros começaram a manifestação como forma de expressão, que muitas vezes era
influenciada pelas músicas ou danças brancas e/ou satirizava o comportamento dos brancos.
O Ragtime, por exemplo, era música popular tocada por brancos. Já o Cake Walk era uma
1 XAVIER, Cínthia N. Jazz, Jazz, Jazz... Revista Conseqüência, Campinas, ano 1, n. 1, p. 18, 1994.
2 XAVIER. Op. cit., p. 21.
97
dança apresentada em Minstrel Shows (responsáveis pela divulgação da cultura negra nos
EUA, de 1845 a 1900) e representava uma sátira ao comportamento do branco.
A emancipação dos escravos, em 1863, foi decisiva para a história do jazz, já que seus
cantos e danças puderam sair das fazendas a que estavam restritos. Os negros levaram com
eles as transformações que fariam as danças tribais africanas chegarem ao jazz. Foram os
brancos, no entanto, que levaram primeiramente essa dança aos palcos, tendo os negros que
enfrentar um caminho mais longo para chegar até lá.
"Nova Orleans possuía um clima que contribuiu para a formação do jazz",3 e gerou um
estilo musical que foi batizado com seu nome. A cultura negra começava a se espalhar por
meio das Work Songs, dos Spirituals e dos Blues. Nesse período, surgiu a improvisação e com
ela as Jazz Bands. O Dixieland, jazz branco, trouxe consigo a formação da Original Dixieland
Jass Band, que em 1917 "realizou a primeira gravação de jazz da história. [...] Costuma-se
considerar que o Ragtime, o New Orleans e o Dixieland deram início à história do jazz".4
A Primeira Guerra Mundial provocou o êxodo de vários negros do sul dos EUA para o
norte e para Nova York. O fechamento de Storyville, bairro de New Orleans em que o jazz se
desenvolvia, levou os bailarinos a se mudarem para o norte. Simultaneamente, os negros
recrutados pelo exército levaram seus ritmos e danças para a França.
Nesse período, as cidades de Harlem e Chicago (EUA) tornaram-se os principais
redutos do jazz. O novo estilo musical, Chicago, aparece juntamente com o Blues Clássico, e o
New Orleans atinge seu apogeu. A música foi adquirindo um caráter mais pessoal e criaram-se
o Riff-Still, esquema de chamadas e respostas e as Jam Sessions, reuniões de improvisadores.
Iniciou-se um período de comercialização do jazz e de modismo da dança. Surge o Bebop,
música de caráter nervoso e complicado, o que contribuiu para um retorno ao jazz de New
Orleans e Dixieland, em uma busca do público a algo mais simples e tranqüilo.
A dança negra começou a conquistar os palcos novaiorquinos com Darktown Follies,
mas foi em 1921, com a estréia de Shuffle Along, que obteve grande êxito. A comédia musical
branca, desde o começo do século, incorporou novas músicas e danças à sua bagagem
sempre em transformação. A dança jazz trouxe à dança americana novas possibilidades
coreográficas. George Balanchine5 criou, em 1933, A Escola de Ballet Americano, que se
tornou grande palco de criações coreográficas, alimentando, inclusive, a Broadway e as
comédias musicais.
Outro nome norte-americano de grande relevância para o jazz é o de Katherine
Dunham.6 Ela
3 XAVIER. Op. cit., p. 25.
4 XAVIER. Op. cit., p. 26.
5 FARO, José Antonio; SAMPAIO, Luiz Paulo. Dicionário de Balé e Dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. p. 26.
6 FARO; SAMPAIO. Op. cit., p. 128.
98
havia montado um grupo e uma escola em sua cidade natal (1931), antes de trabalhar também
para o Teatro Federal e de criar a primeira companhia importante de dança inteiramente formada
por negros fora dos canais da dança comercial. [...] A dança negra se converteu a partir dela em
algo muito mais livre, baseado na improvisação individual e na expressividade desbordante;
junto com John Platt, seu marido, Katherine Dunham levou aos palcos de todo mundo
espetáculos que não só revolucionaram a dança, como criaram o que contemporaneamente se
denomina modern jazz dance.7
A evolução da comédia musical colocou o jazz em grande destaque e coreógrafos e
bailarinos de excelente qualidade foram surgindo:
Nomes como Jack Cole, Robert Alton, Jerome Robbins, George Balanchine, Gower
Champion, Bob Fosse ou Michael Kidd, entre os coreógrafos, ou Fred Astaire, Clifton Webb,
Dunham Eddie Cantor, Cyd Charisse, Joel Gray, Mikhail Barishnikov, Leslie Caron, Bill Robinson
ou Ginger Rogers, entre os bailarinos, seguem uma carreira profissional dividida entre os palcos
e Hollywood.8
O JAZZ NO BRASIL - ANOS 50
Os rumores jazzísticos começaram a chegar no Brasil entre as décadas de 1930 e
1940, com a difusão do sapateado em nosso país. Na década de cinqüenta, fortaleceram-se
por meio dos shows de Teatro de Revista, musicais de televisão e programas de auditório no
rádio. Os shows mais famosos de Carlos Machado, pelos quais acreditamos ter se iniciado
este espírito jazzístico, com danças como o charleston, já considerado jazz (segundo a
bailarina Débora Bastos), se iniciaram nos anos 50. Alguns destes foram: Cavalcade (1950),
Segredos de Paris (1951), Um americano em Recife (1952), Clarins em Fá (1953), Feitiço da
vila (1953), Acontece que eu sou baiano (1954), Grande Revista (1955), E o espetáculo
continua (1956), Rio de Janeiro a Janeiro (1957), Bela época 1900... E 58 (1958), The milliondollar
baby (1959).
Destes shows, de musicais televisivos produzidos, principalmente pelas TVs Tupi e
Record, e de programas de auditório produzidos pela Rádio Nacional, começaram a surgir
bailarinas que, mais tarde, seriam as primeiras professoras de dança jazz no Brasil. Marly
Tavares e Vilma Vernon, ambas tendo iniciado seus estudos no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, são os nomes de destaque. Marly, que teve como primeira experiência profissional
apresentações no Radio City Music Hall, nos EUA, ao voltar para o Brasil começou a trabalhar
em shows. Vilma Vernon iniciou carreira profissional em televisão em 1957 (TV Record, São
Paulo) e daí partiu para os shows de Teatro de Revista, no Rio de Janeiro.
Paralelamente, as comédias musicais americanas e os filmes hollywoodianos, repletos
de coreografias de dança jazz, estavam chegando no Brasil, marcando, também, uma forte
7 PRIMEROS Pasos en Jazz Dance. Barcelona: Parramón, 1987. p. 23.
8 PRIMEROS Pasos... Op. cit., p. 29.
99
influência. Alguns dos materiais cinematográficos que chegaram ao país, nesse período e um
pouco anteriormente, foram: The Jazz Singer (1927), 42nd Street (1933), Oklahoma! (1943),
West Side Story (1954), Seven brides for seven brothers (1954) e My fair lady (1956).
Bailarinos e coreógrafos desses filmes começaram a ser chamados, mais tarde, para se
responsabilizar pelas coreografias de nossos shows, como é o caso de Gower Champion, em
Alô, Dolly! (1962).
ANOS 60
A década de 1960 foi de grande importância para a dança jazz, pelas realizações
decorridas neste período. A produção de musicais do Teatro de Revista era vasta e intensa.
Em 1960, ocorreram, dentre os shows de Carlos Machado: Carlos Machado variety
(1960), Holiday in Spain (1960), Carnival in Rio (1960), Festival (1960) e Brazil (1960). Mas foi
1961 o ano de grandes sucessos da Revista, no que se refere a contribuições para a dança
jazz. Alguns deles são:
· Skindô: coreografado por Sônia Shaw, teve como assistente de coreografia Juan
Carlos Berardi. Foi produzido por Abraham Medina e levou Marly Tavares ao
estrelato no papel de Skindô;
· Marco Pólo: coreografado por Denis Gray, dirigido por Carlos Machado, teve a
participação de Marly Tavares como solista;
· Samba, carnaval e café: produzido por Carlos Machado, coreografado por Juan
Carlos Berardi, com Marly Tavares;
· Vive les femmes: produzido por Carlos Machado, coreografado por Juan Carlos
Berardi;
· Varão entre as mulheres: produzido por José Vasconcelos, teve como uma das
principais bailarinas Vilma Vernon;
· No País dos Bilhetinhos: produzido por José Vasconcelos, coreografado por Gilberto
Brea, teve Vilma Vernon como uma das principais bailarinas;
· ... E o espetáculo continua: com o mesmo nome do espetáculo produzido por Carlos
Machado em 1956, este foi produzido por José Vasconcelos e teve Vilma Vernon no
elenco.
Foi ainda nesse ano que, possivelmente, Lennie Dale veio ao Brasil pela primeira vez.
Lennie Dale foi ex-aluno e assistente de Jerome Robbins em um dos musicais americanos de
maior sucesso: West Side Story (Amor, sublime amor).
100
Em 1962, Obrigado, Rio; Zelão e Boca Rica; e Ôba, produzidos por Carlos Machado,
levaram Vilma Vernon ao estrelato. Ôba trouxe um trio de ballet moderno de Buenos Aires,
considerado referência no espetáculo e, segundo informações de Vilma Vernon, foi o show que
trouxe Lennie para o Brasil (contratado por Carlos Machado para coreografar). O ano de 1962
também foi marcante para a bailarina Marly Tavares, que recebeu o título de personalidade do
ano. Além disso, ela interpretou Minnie Fay, em Alô, Dolly!, show de grande sucesso,
produzido por Victor Berbara, com coreografias de Gower Champion, sob responsabilidade de
Lowell Purvis.
1963 foi um ano de conquistas para a dança jazz. Teu cabelo não nega e Elas atacam
pelo telefone foram destaques dentre os shows produzidos por Machado. No primeiro, a
"coreografia – um dos pontos altos do espetáculo – é de Juan Carlos Berardi".9 Foi nele
também, que "Vilma Vernon, na noite de estréia, ganhou logo o título de 'a melhor bailarina
brasileira'."10 Neste mesmo ano ela afirmou: "Gosto do bailado moderno e gosto de dançar
liberta das imposições do academicismo".11 E acrescentou:
O bailado moderno encontra maior e mais fácil receptividade do público no show do
Copacabana Palace: todos sentem a música de Lamartine Babo. São verdadeiros hinos
populares. E todas as noites, todos sentem vontade de invadir o palco para dançar com os
artistas. O ballet clássico tem esse poder, essa magia? Não tem.12
Em Elas atacam pelo telefone, o modern jazz estava em destaque. O show contou com
as presenças de
· Lennie Dale, que coreografou o espetáculo. Foi "bailarino principal de West Side
Story em New York, Londres e Paris. [...] Diretor dos cursos de modern jazz dance
nos estúdios Carlos Machado Espetáculos, além de sua atuação em números
extraordinários, formou a equipe de bailarinos e bailarinas que atuam neste show;13
· Vilma Vernon que, segundo breve currículo no programa do espetáculo, estava se
dedicando ao modern jazz, com Lennie Dale;
· Sigrid Hermanny, "uma das melhores bailarinas de modern jazz do Brasil;14
· Elizabeth Oliosi, que neste espetáculo realizava "eletrizantes números de modern
jazz com Lennie Dale";15
9 Fatos e Fotos, [s.l.], 31 ago. 1963.
10 Fatos e Fotos. Op. cit.
11 CARVALHO, Thor. Vilma Vernon profetiza morte do balé clássico. Noite e Dia, [s.l.], 18 set. 1963.
12 CARVALHO. Op. cit.
13 Elas atacam pelo telefone. Show produzido por Carlos Machado, 1963. (Programa do espetáculo)
14 Elas Atacam Pelo Telefone. Op. cit.
15 Elas Atacam Pelo Telefone. Op. cit.
101
· Joe Bennett, "bailarino de alta classe, em modern jazz, foi um dos Jats de West
Side Story, na Broadway. [...] Destacado por Jerome Robbins como 'um verdadeiro
prodígio da dança moderna'";16
· Samba's 3, que fazia "sua estréia no Fred's, selecionados por Lennie Dale, para
atuar em alguns de seus números sensacionais de modern jazz de Elas atacam
pelo telefone".17
É nesse período também que acreditamos haver uma influência da dança jazz no
movimento musical denominado Bossa Nova, e por conseqüência, no que se chamou a dança
da Bossa-Nova.
Com o surgimento, na música popular brasileira, do movimento da bossa nova, em que elementos
jazzísticos tiveram grande influência, era natural que assim que a novidade atingisse o mercado norteamericano,
ou antes, os ouvidos do músico de jazz americano, a influência se desse de maneira inversa, e
a partir daí os ritmos latinos e o jazz passaram a se entrecruzar cada vez mais, sendo que com a chegada
do samba e dos ritmos do Caribe – que, como o jazz, têm origem africana – o jazz-ballet ganhou novos
interesses. A bossa nova encontrou, recém-chegado dos EUA, o sensacional Lennie Dale, que se
estabeleceu entre nós e fez crescer cada vez mais entre os jovens a vontade de aprender a dançar o jazz.
O samba colocou no estilo de Lennie (na tradição das grandes escolas americanas de jazz dance) o
tempero latino que o tornou um dançarino sui generis, de fortíssima influência entre os bailarinos
brasileiros.18 [sic]
Em 1964, destacou-se Débora Bastos, que traçava sua carreira de sucesso, iniciando
seus estudos com Lennie. Hoje, professora conceituada, ela é uma das grandes
personalidades do jazz no Brasil.
Em 1965, foi produzido, por Abraham Medina, o show Arco-Íris, que
reúne uma plêiade de artistas novos e valorosos, tais como Vilma Vernon, os cantores Hilton Prado e Sylvio
César, o ator Perry Sales (no papel-título), o dançarino Carlos Leite e o bailarino internacional Victor Ferrari,
nas figuras estrelares do feérico espetáculo, secundados por dezenas de artistas. [...] Arco-Íris conta ainda
com música de Roberto Menescal (introduzindo a Bossa-Nova no teatro) [...] com coreografia de Luciano
Luciani, Lennie Dale & Victor Ferrari.19
Em 1967, a mistura jazz, samba e bossa nova se confirmava em uma nota do Jornal
Última Hora:
Carnaval no Rio – promessa de gozo e alegria de viver, turbilhão de música e dança. Dele é a
jovem Bossa Nova como o Samba, ritmos que nos entram no sangue, que se apoderam do corpo e o
arrastam no estonteamento da rapidez e liberdade. Bossa Nova e Samba, música brasileira hoje soando
em todo o mundo. Como ela é realizada, como é transformada em movimento e dança, eis o que
mostraram dez artistas de uma tournée pela Alemanha e Europa, no Festival Bossa Nova no Brasil. Seu
temperamento é original e irresistível. Quando Marli Tavares, a estrela do grupo, começa dançando, o
Samba se revela como algo mais que uma dança exótica da moda: Samba é o princípio fundamental da
música brasileira, que nasceu entre os índios, e se fundiu com o folclore africano, o jazz norte-americano e
as modinhas tradicionais européias.20
16 Elas Atacam Pelo Telefone. Op. cit.
17 Elas Atacam Pelo Telefone. Op. cit.
18 NARDINI, Nádia. Jazz. [s.l.],[19--].
19 JAFA, Van. Arco-Íris de Milhões. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 jul. 1965, 2. Caderno.
20 Bossa Nova em S. Última Hora, [Recife], 16 mar. 1967.
102
Embora se tenha conhecimento de que Lennie Dale havia ministrado aulas de jazz nos
Estúdios Carlos Machado desde 1963, foi 1968 o ano em que Vilma Vernon abriu sua
academia Modern Jazz Dance, no Rio de Janeiro, considerada "única do gênero no Brasil”,21
pioneira no estabelecimento de um espaço específico para esta atividade. Ela trouxe ao país a
técnica de Luigi, um dos primeiros e dos mais significativos professores de jazz americano.
Este estilo tinha uma linha influenciada por elementos do ballet clássico.22 Vilma teve entre
seus alunos: Sônia Machado, Yolanda Ferrer, Betty Faria, Marília Pêra, Leila Diniz, Erasmo
Carlos, Reginaldo Faria, Rosemary e Miéle.
Nessa mesma época, Jo Jo Smith veio ao Brasil pela primeira vez, convidado por
Abelardo Figueiredo para montar o espetáculo Momento 68. Influenciado por Katherine
Dunham, Jo Jo era um professor de jazz muito conhecido nos EUA e teve entre seus alunos
Lennie Dale e John Travolta.
O musical Hair apresentou-se no Brasil em 1969. Foi o espetáculo em que Ciro
Barcellos fez sua estréia profissional. Ciro Barcellos é dançarino, coreógrafo e diretor, estudou
com E. Feodorova e Lennie Dale, no Rio de Janeiro, depois, dança moderna em Paris com J.
Russilo, C. Carlson e J. Muller e estagiou com Maurice Béjart. Especializou-se em barra no
chão com J. Finaért (Paris). Foi integrante dos Dzi Croquettes e fundou o Balé do Terceiro
Mundo, do qual era coreógrafo e diretor.23
ANOS 70
Esse período trouxe os Dzi Croquettes, grupo de dança criado por Lennie Dale, de
grande influência para o jazz no Brasil. Acompanhados por fãs fiéis onde se apresentavam, os
Dzi fizeram escola, interferindo na formação de multiplicadores deste estilo de dança.
Em 1970 Victor Berbara produziu Promessas, Promessas, coreografado por Ken
Mitchell e que teve Marina Marcel como maitre de ballet. Lançada por Walter Pinto, Marina foi
bailarina de Teatro de Revista e estrela de Carlos Machado em vários musicais, além de ter
participado de programas nas Tvs Tupi, Rio e Record (em 1958, 1959 e 1960).
1972 foi o ano em que Abelardo Figueiredo produziu Brasil Export Show 72. Jo Jo
Smith coreografou o espetáculo e trouxe suas Jo Jo Dancers para serem bailarinas do mesmo.
21 FERREIRA, Joarez. Jazz-Ballet: A Ginástica Musicada. O Cruzeiro, [s.l.], 24 nov. 1971.
22 WYDRO, Kenneth. The Luigi. New York: Doubleday, 1981.
23 FARO, Antonio José; SAMPAIO, Luiz Paulo. Dicionário de Ballet e Dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. p.
45.
103
Em 1975, a Churrascaria Roda Viva inaugurou uma boate e passou a atuar na estrutura
de shows. Seu primeiro espetáculo foi dirigido por Antônio Andrada e coreografado por Vilma
Vernon. Ainda neste ano, Vilma foi coreógrafa e bailarina da abertura do programa Planeta dos
Homens, na Rede Globo de Televisão, que fez muito sucesso.
ANOS 80
Os anos 80 trouxeram um modismo da dança jazz para o Brasil. Nessa época grandes
influências jazzísticas musicadas estavam chegando ao país, como é o caso de Cats (1980) e
dos filmes Grease (1978), All that jazz (1979), Hair (que já havia estado no Brasil nos anos 60,
com o Teatro de Revista e retornava em versão cinematográfica, estreada em 1979), Os
embalos de sábado à noite (1978) , Fama (1980) e Chorus Line (1985).
Depois do balé clássico, da asa voadora e do windsurf, chegou a vez das academias de jazz, novo
modismo propagado por uma telenovela, Baila Comigo. Estilo de dança confundido até recentemente com
ritmos afro e agogo, o jazz começou a se popularizar com o sucesso de filmes como Fama e O show deve
continuar.
Na academia de Lennie Dale e Marly Tavares, o telefone não pára de tocar. Funcionando há
apenas seis meses, a academia já tem quase quinhentos alunos e começa a recusar novos pretendentes.
Outra professora, a bailarina Vilma Vernon, também sente os efeitos da novela em sua academia...
Segundo Marly Tavares, poucos querem se profissionalizar:
A maioria vem mesmo é por moda. Eu espero que não seja apenas uma febre, espero que a
dança fique. Nós queremos abrir campo porque temos poucos bailarinos. Essa é uma grande dificuldade,
pois nunca houve escola. O jazz é conhecido há poucos anos e já foi muito confundido com o rebolado,
pelo menos da parte do grande público. Jazz é um estilo de dança que exige formação clássica. É uma
dança criativa, mas que exige postura e consciência do corpo. É difícil, exige técnica e grande
aprendizado.24
Kaká D'Ávila, professora do Joyce Balé, lembra como essa popularidade começou:
na época das discotèques, com John Travolta nas telas, Dancing' Days e Sônia Braga/Júlia [sic] na
televisão, todo mundo queria entrar na pista sabendo todos os passos de Night Fever e More than a
woman. E as academias de jazz tinham uma coreografia parecida com as dessas músicas.25
Vilma, nesse período, era professora do Corpo de Baile da Rede Globo de Televisão, o
que também significa para a dança jazz, uma divulgação em larga escala. Para aumentar ainda
mais a lista de fatores que levaram o jazz ao modismo na década de oitenta, podemos falar
sobre os vídeo clips, que tiveram como pioneiro Michael Jackson. É certo que a dança jazz foi
muito influenciada por esse veículo no Brasil e no mundo.
Carlota Portella (Rio de Janeiro) e Roseli Rodrigues (São Paulo), atuais referências do
jazz brasileiro, são dois nomes que começam a se destacar nessa época, não apenas em
carreiras individuais, mas como formadoras de discípulos. Alexandre Magno é um caso:
24 Academias de Jazz Baila Comigo: Todo mundo quer entrar nessa dança. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 17 maio
1981. Jornal da Família.
25 ALVIANO, Wanda. Uma alternativa para quem quer manter a forma: Dança. Manequim, [São Paulo], p. 97, [19--].
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formado por Carlota Portela, dedicou-se à montagem de coreografias para vídeo clips, tendo
trabalhado, inclusive, com Madonna. Carlota e Roseli construíram suas academias e
companhias profissionais em 1980: Jazz Carlota Portella e sua Companhia de Dança Carlota
Portella – Vacilou, Dançou; e Raça Cia. de Dança de São Paulo, com sua escola Grupo Raça
Centro de Artes, respectivamente.
ANOS 90 E O JAZZ NO BRASIL HOJE
Percebemos que no percurso de desenvolvimento desta dança ocorreram alguns casos,
nos quais o despojamento e o vigor característicos do jazz foram confundidos com a ausência
da técnica. Entendemos que a técnica, na coreografia, não precisa estar em primeiro plano,
mas precisa existir para que permita que o bailarino a transcenda. Para isso, é fundamental
que na aula ela seja elemento fundamental e bem trabalhado. A técnica permitirá que o
bailarino conheça seu próprio corpo, seus limites, suas capacidades. Acreditamos que é
apenas dessa forma que ele encontrará o espírito vibrante no corpo.
A partir da pesquisa realizada, a principal questão que nos instiga no momento é se, de
fato, as técnicas que interferiram na formação pedagógica das profissionais entrevistadas não
exercem mais nenhuma influência nas aulas que elas ensinam hoje, como chegaram a afirmar
Vilma Vernon, Débora Bastos e Marly Tavares. Transformações ocorrem naturalmente em um
processo, mas seria possível eliminar totalmente um aprendizado obtido, a ponto de negar
qualquer resquício dele para o estágio atual de ensino?
Podemos também verificar que embora haja essas variações e muitas outras
decorrentes do tempo e dos estilos pessoais de cada professor, ainda se preserva um espírito
daquele jazz que começou a se instaurar definitivamente em nosso país nos anos sessenta.
Afirmamos isso, após pesquisas em várias academias de dança. Além disso, constatamos que
os profissionais que atuam hoje como professores deste estilo de dança, ainda se compõem,
em parte, por bailarinos que tiveram seu aprendizado com as personalidades destacadas aqui,
as quais também ministram cursos por todo país. Esses discípulos se espalharam por todo o
Brasil e disseminam a dança jazz em academias e grupos de dança profissionais ou amadores,
sendo que em suas aulas ainda se fazem presentes alguns dos elementos característicos das
técnicas que instauraram o jazz no país.
As salas já não são tão cheias como nos anos oitenta e sabemos que as aulas que são
ministradas hoje não são iguais àquelas de décadas atrás, e nem poderiam ser, pois senão
teríamos ficado estanques e deixado de evoluir. Porém, diante da análise dos conteúdos
ministrados nas aulas dos anos sessenta estudadas e os que se ministram em aulas na
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atualidade, concluímos que existem influências que ainda permanecem. Acreditamos ser este
um fator merecedor de um estudo mais aprofundado.
Os musicais tendem a retornar com bastante entusiasmo, em uma nova roupagem,
embalados pelo cinema, que também aposta nesta retomada. No Brasil, são exemplos de
sucessos recentes: Rent (1999); Ópera do Malandro (2000-2001); Vítor ou Vitória (2001); Blue
Jeans (2001); Lés Miserables (2001-2002); Goodspell (2002); A Bela e a Fera (2003); Chicago
(2004); Ah... Se eu fosse Bob Fosse (2004). Muitos deles se apresentam no Teatro Abril, em
São Paulo, palco capaz de comportar as estruturas dessas grandes produções. A bailarina
Fernanda Chamma é um nome que se destaca na preparação de bailarinos para a
apresentação de espetáculos desse gênero.
Com o processo de globalização que vem gradualmente sendo instalado no mundo, o
acesso a vídeo clips, espetáculos de dança e fitas de vídeo (e atuais Dvds) tem crescido
consideravelmente. Isso nos leva a acreditar em uma tendência muito forte de junção de estilos
de dança, o que dificulta definir com clareza o que é o jazz atualmente. Isso porque é uma
dança que, segundo Carlota Portella, não foi registrada, por meio da organização de uma
técnica específica, sendo esta proveniente da sistematização de cada estilo particular ou do
panorama geral. Isso trouxe conseqüências como a não-estruturação teórica, o que faz com
que a história do jazz se perca e que esses vários estilos vão desaparecendo. Assim, outra
característica que temos notado no jazz brasileiro dos anos noventa e de inícios do século XXI
é a forte influência que sofre das danças moderna e contemporânea.
Em um período em que estas danças vêm crescendo no país, começa-se a notar uma
tendência em adotar procedimentos técnicos e coreográficos do moderno e do contemporâneo
nas aulas e coreografias de jazz. Podemos observar este encaminhamento quando analisamos
as companhias profissionais de dança dirigidas por Carlota Portella e Roseli Rodrigues.
Consideradas, hoje, referência nacional no que se refere à companhias de jazz brasileiras, elas
já começam um processo de interrelação com as linguagens contemporâneas. Dessa forma,
podemos afirmar que o jazz feito no Brasil atualmente se encontra em um momento de
transformação, não tendo características muito definidas. Essas constatações nos fazem
refletir sobre a história atual da dança jazz, pois levantam questões que problematizam a
escassez de um registro documental nesta área, além de suscitar uma nova discussão: se
esses estilos estão realmente se esvaindo, será que não estão desembocando na construção
de um outro?
A comunicação muito próxima entre os vários estilos de dança pode ser extremamente
proveitosa, desde que isso não venha eliminar a história anterior de nenhum, pois esta servirá
de suporte e princípio para as novas tendências. Conclui-se, portanto, que a sistematização
das técnicas de jazz, assim como de sua história, deve ser estimulada, por meio da
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manutenção de seus conceitos básicos, apesar das variantes de estilos, para que essa dança,
tão rica por seus valores culturais e sua estética, não se perca no passado.
Referências
Academias de Jazz Baila Comigo: todo mundo quer entrar nessa dança. O Globo, Rio de Janeiro, 15
maio 1981. Jornal da Família.
ALVIANO, Wanda. Uma alternativa para quem quer manter a forma: dança. Manequim, [São Paulo], p.
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"A Dança e a Globa(na)lização" (Ana Carolina Mundim)

A dança e a globa(na)lização
Ana Carolina Mundim: Graduada em Dança pela UNICAMP, Mestre em Artes pela UNICAMP,
Doutoranda em Artes pela mesma Instituição, integrante do GPDT República Cênica, coordenadora
do PADES (Projeto Artístico para o Desenvolvimento Social), Professora externa da PUC-Campinas
- (mundim@iar.unicamp.br)
Publicado parcialmente no jornal “Ô Sujeito!”, Ano 1, n.4, fevereiro 2005
(Edição e Produção: Elinaldo Meira, Jornalista Responsável.: Caio
Albuquerque - Mtb. 30356).
Chegamos na era da Globa(na)lização! Corpos caoticamente organizados na mesmice
convencional. Marionetes da ditadura consumista. Soldados da estética pausterizada. Como pensar a
dança (e realizar a dança do pensar), em meio a plásticas compradas e órgãos artificiais? Elementos
estranhos que se acoplam à matéria e por ela são absorvidos, seguindo a lei natural mercadológica.
No período da dança acéfala, constituída de bundinhas de “tchutchucas” e cachorras, como formar
um pensamento crítico sobre o corpo em movimento? Na superexposição da forma, enaltecendo o
ego, compre a perfeição e leve de brinde um pacote de novas emoções.
Dança-arte ou dança-mercadoria? Na perspectiva sensível, da construção de sonhos, da
elaboração de esboços no ar, delineando rastros da escrita poética, entendemos o corpo criativo,
artéria que bombeia inspiração e atitude. No enfoque mercantilista, o consumo é felicidade. O corpo
mecanicista, da tirania erótica. “Fique em forma dançando!” Modismos efêmeros que não se
sustentam, não permanecem. Não são, apenas estão (e por pouquíssimo tempo).
Não sejamos demagogos! No Brasil, nossa referência, para quem vive da dança, ela é
produto, comércio. Aqui se encaixaria aquela célebre frase “arte e sonhos alimentam o espírito, mas
não enchem barriga.” Portanto, como sobreviver profissionalmente neste contexto? Vendemos (ou
pelo menos tentamos) aulas e espetáculos. Isso é fato. E às vezes parece que temos que nos sentir
culpados por isso. Em um País no qual a área artística passa longe ou desapercebida nas escolas,
paga-se R$10,00 nas famosas “junk” food, de lanchonetes do tipo “fast food” (atentem para as
palavras globa(na)lizadas), mas não se paga R$5,00 para ir a um espetáculo de dança porque “não
temos dinheiro”. O que não se tem é educação cultural! Ausência de hábitos. Percebam: o
considerado lixo comestível tem mais valor do que a arte, em uma escala comparativa. E é por isso
que somos convidados, sim, centenas de vezes para nos apresentarmos em festas, eventos,
convenções, etc, sem remuneração! Ah! E não podemos nos esquecer de nos sentirmos lisonjeados,
pois alguém lembrou de nós e nos proporcionou a entrada para o mundo “mágico” da divulgação do
nosso trabalho! Será que permanecemos na retrógrada política do Pão e Circo?
Não devemos ter vergonha de colocar valor em nosso trabalho. E consideremos a palavra
valor aqui não apenas como mérito, mas também como significação monetária. Todas as profissões o
fazem. Experimentem pedir a um pedreiro, uma manicure, um médico, um advogado, que trabalhem
de graça. Acredito que terão uma certa dificuldade em encontrar. Mas se conseguirem, entrem em
contato conosco! 08000000 (R$1,50 o min.) ou compre-compre-compre@já.com.br. Pode ser que
estejamos enganados...
Receber pelo serviço prestado é direito e não favor. Isso sim deve ser divulgado! A
preocupação central de um artista, portanto, deve se concentrar no aspecto do produto a ser
comercializado e na sua qualidade. Na era em que o resgate individual e a busca de identidade
cultural se dissolvem e se escoam”interneticamente”, tecendo uma rede que torna público o privado,
onde estará a dança-arte?
Estamos em meio a valores sociais que estabelecem o externo como possibilidade de
contentamento, onde tratamentos estéticos e cirúrgicos abrem caminho para o paraíso e, em casos
excepcionais, ainda podemos contar com as maravilhosas correções proporcionadas pelas fotos
digitais. No País onde uma emissora de televisão determina conceitos e costumes, indicando padrões
de beleza como eixo primordial na formação do indivíduo, proporcionando a instauração do ócio,
conivente e conformado com a utilização das mídias (ainda mais fortemente se associado ao uso do
computador), onde se estabelece o papel da dança?
Entendemos a dança como a possibilidade de auto-conhecimento corporal, de compreensão
do sistema vital enquanto meio interno, apreciação da matéria visceral, veículo de sabedoria e
sensibilidade. Passível de erros e acertos, como todas as práticas humanas, porém coerente no que se
refere ao respeito com a individualidade e a sistemática inerente a este aspecto. Propomos que a
dança seja diversão, entretenimento e alegria. Mas não só isso. Trabalhamos para que ela seja em
igual ou maior proporção consciente, reflexiva, educativa e que seja reconhecida como gênero de
primeira necessidade, que é. Mas para isso, é preciso formar uma corrente de corpos críticos,
pensantes, que se unam na perspectiva de correr contra a corrente do imediatismo, gerando pequenas
sementes de pesquisa e aprendizado, para florescerem em um futuro próximo. É necessário usar a
troca de informações proporcionada pela globalização e suas tecnologias digitais não para a
montagem virtual de auto-imagens idealizadas, mas para o aprimoramento de nossa cultura geral e
fortalecimento de nossa cultura local, valorizando as diferenças de raça, etnia, hábitos, costumes. E
deixamos aqui (talvez de maneira utópica), um desafio a todos nós, artistas e apreciadores da arte:
que sejamos edificadores de um elo de comunhão entre os povos, instigando a substituição de corpos
banalizados e massificados pelo movimento de corpos inteligentes, criativos e singulares, mas não
egocêntricos, capazes de construir a coletividade pacífica, sem perder a individualidade.